Menino feliz, de Alegra Catarina

Menino feliz, de Alegra Catarina

Peguei o trem das três.

Ele o das dezoito.

Andei descalço na areia as cinco e ponto.

Ele gelou os pés na água fria do mar das vinte horas.

Dancei sozinha uma música que gosto assim que caiu a noite.

Ele soou outro ritmo manhã adentro.

Despertei do sono e fui virar terra.

Ele cobriu o quintal com galhos de árvores podadas.

Plantei salsas e outros temperos.

Ele recolheu as últimas orquídeas protegidas do vento sul.

Pus água para esquentar numa panela.

Ele preparou molhos e congelou.

Meu macarrão empapou.

Ele apresentou a massa al dente.

Escolhi O andar do bêbado para o fim do dia.

Ele fez uma crônica, enquanto lavava os cabelos.

Fiz poesia de vocabulário pobre.

Pendurou as toalhas e juntou as roupas.

Fiquei sem dormir.

Ele fez exercícios.

Atrasei em cinco dias meu trabalho.

Ele chegou na hora.

Fiz tudo errado.

Ele consertou tudo sozinho.

Enlouqueci a seco.

Ele dirigiu reto para casa.

Rabisquei meu calendário com flechas e círculos.

Ele contou os dias nos dedos.

‘Parei aqui’ em oito livros que estou lendo ao mesmo tempo.

Ele estudou profundamente o mesmo assunto.

Eu fui dele sem nem saber.

Ele soube que não era meu o tempo todo.

Contei detalhes íntimos.

Ele ficou sem palavras, diante do meu ser imbecil.

Dei liberdade de ir.

Ele foi ficando.

Provoquei a ira.

Ele recuou.

Suguei com canudinho para dentro do meu mundo.

Ele riu, incomodado.

Peguei o trem das dezoito.

Ele saiu às três.

Abri um jornal que alguém esqueceu.

Era dele.

Cobri o turno.

Ele deixou pão na minha porta.

Dormi.

Ele passou café fresco.

Visitei minha mãe.

Ele comprou presente para a mãe dos seus.

Voltei cedo trabalhar.

Ele escreveu um livro neste meio tempo.

Esvaziei a lixeira.

Ele fez faxina geral.

Minhas malas estão prontas para se aposentar em dez anos.

Ele está só começando.

Eu brinco com sentimentos alheios.

Ele cuida de tudo que sente.

Provoco uma visão errada a meu respeito.

Ele acerta cada ponteiro sobre si mesmo o tempo todo.

Tenho sentido falta de ter alguém pra mim este ano, depois de séculos.

Ele vive em outra estação.

Eu digo que tudo bem.

Ele sabe que não.

Se gostou, leia também: ENQUANTO O SOL PARTIA