Saia rodada, de Alegra Catarina.

Saia rodada, de Alegra Catarina.

“E o velho coração continua curtindo sempre um eterno e penúltimo amor.” (Mario Quintana)

Escolhi um vestido salmão, sandália salto alto com pedras enfeitando os pés, unhas de cor transparente. Foi uma escolha bem adequada, para minha sorte.

Descobri, nos cinco primeiros minutos de conversa, que ele não lia. Não foi o erro mais grave. Pedi que guardasse meu cartão no bolso, ou junto dos seus, na carteira, pois não queria entrar no restaurante com a bolsa enorme, e todas aquelas coisas uteis que carrego sempre junto, como a máquina fotográfica, batom, lenços de papel, roupa emborrachada, casaco, telefone, carteira com documentos, dinheiro, dados da seguradora, um cartão de táxi para emergências, a listinha em fonte oito com o nome e telefone de alguns amigos, pai e mãe, para o caso de o telefone ficar sem bateria e eu precisar de um número que jamais poderia saber decorado.

Ele chegou na hora marcada, nem um minuto a mais, nenhum a menos. Mal tive tempo de escolher uma bolsa e não tenho nada que combine perfeitamente com este vestido, constato. É sábado a noite. (Que tipo de homem convida uma mulher para jantar num sábado à noite e vem buscá-la em casa com o carro sujo?)

A música estava ótima, o salmão excelente, eu constrangida por ele ter escolhido um lugar público para conversarmos, com tanta gente conhecida ao redor. Um homem recém separado e eu ali, dividindo a mesa, toda bonitinha! Imaginei a mente perversa de algumas pessoas tentando ligar a separação de um casamento de vinte e cinco anos com o meu nome. Era uma vez a minha boa reputação… Certamente, pensariam, já estavam de rolo antes. E mal nos vimos duas ou cinco vezes nesta vida, em eventos de família, no tempo em que ambos éramos casados, mas tudo bem.

Leio cada pensamento. Alguns casais entram e saem ocupando e desocupando as mesas ao lado enquanto permanecemos ali. A conversa a certa hora engrenou. Entre os que vinham e iam, quase todos eu poderia dar a ficha completa: nome, sobrenome, casado com quem, quantos filhos, onde trabalha. Mas foi a chegada de alguém específico que me fez rir e lembrar de uma história de recém separada (faz três anos) que pude contar.

Depois vieram outras e me vi dando conselhos de quem meu amigo deveria ‘pegar’, quem não, evitando claro pessoas próximas da família, pois o peso emocional e cobranças seriam maiores. Dei dicas de como se comportar diante do facebook, e de como não expor as moças neste início de separação convidando-as a jantar. Sempre melhor chamar para o almoço a primeira vez. Certo que já almoçamos juntos, já tomamos café juntos, já estivemos na mesma casa de praia – mas assim, sozinhos, em público, esta é a primeira vez. Isso pode assustar as pessoas, levá-las a fazer suposições.

Comentou comigo como se sentiu se arrumando para um ‘encontro’. Acaso não tenha reparado, isso não é um encontro, apenas horário de jantar compartilhado. Mas o que faço com tanta timidez e atrapalhamento senão ignorar, rir, e começar a falar de mim, contar meus causos, para que relaxe? “Uma linda mulher” não faria melhor. Vamos a história que me faz intimamente gargalhar.

A música estava boa. Anos oitenta ou menos. Erasmo Carlos cantava “um homem pra chamar de meu, mesmo que este homem seja eu”, que eu atribuía ao Ney Matogrosso, erroneamente. Elvis Presley também reconhecemos, como não? Uma dupla internacional nunca ouvimos falar. E podíamos ficar ali até amanhecer jogando o jogo de quem acerta primeiro o nome da banda ou cantores na tv a cabo. Tocou uma lenta “do nosso tempo” e ele me convidou para dançar. Eu aceitei, fazendo graça, mas não tiramos a bunda da cadeira. As pessoas poderiam comentar sobre nosso estado de embriaguez (leia-se: uma cerveja dividida em dois). Cidade pequena, já viu.

Comentamos como não há mesmo um lugar decente para se dançar na provincia. A não ser um, em específico. Estive lá outro dia, num evento Flash Back 80, esta é a história. Fui com algumas amigas. Elas não dançam. Tomei talvez umas oito garrafinhas d ´água – não bebi nada – porque teria de dirigir na volta. Dancei sem parar quatro horas seguidas enquanto era observada por olheiros de plantão. Entre eles, este homem que acaba de entrar no recinto e está rindo pra mim agora. Ele sempre ri quando me vê por aí, em algum restaurante. Às vezes tenho impressão de estar sendo seguida, porque sempre acaba aparecendo onde estou.

Acho que ele pensou, naquele dia, que eu estava bêbada, contei, olhando para ele, que ouviu, e riu. Voltou o olhar à pessoa que me acompanhava no jantar, retornando para mim como a dizer que não aprovava me ver ‘acompanhada’. Sinceramente, não sei mais o que fazer para agradar este homem! Quando me vê com meus três filhos almoçando, ri. Quando me vê jantando com um amigo, ri. Quando me vê dançando quatro horas seguidas, ri. Talvez ele simplesmente goste do meu sorriso, concluo, e apenas retribuo. Ele é alto, magro, destas pessoas naturalmente engraçadas.

Perguntou para alguém na mesa ao lado se já tinha recebido os documentos. Toda vez que o vejo, ou está me olhando, ou falando de trabalho. Nunca estou falando de trabalho quando me vê, mas certamente sempre o estou olhando. Viramos parceiros anônimos desconhecidos e cúmplices de qualquer coisa que não sei exatamente o que, neste mundinho velho. Jamais nos falamos, não sei seu nome, creio que não saiba o meu, mas de algum modo, nos divertimos com a presença um do outro.

Volto a dar a devida atenção a quem me acompanha na mesa. Não sei quanto tempo estive ausente em pensamento. Desperto. Talvez por ter sido tocada na mão, como uma boneca robô que volta a ser ligada depois de um pequeno pane-distração. O jantar acabou. Vamos ao balcão dividir a conta. Insisto nesta divisão. Odeio que um homem pague minha conta. Ele paga a conta! Mantém consigo meu cartão na carteira. Esquece de me devolver. Abriu a porta do carro duas vezes, ajeitou minha cadeira, foi gentil e carinhoso ao extremo, bom ouvinte e omitirei os outros detalhes. Ao final errou meu nome, e imediatamente corrigiu, tudo bem. O que não perdoo mesmo é que pagou a conta.

Não gosto que paguem minha conta, insisto. Ele diz que me dará a oportunidade de pagar a próxima. Se soubesse o que eu sei: depois desta, não haverá próxima. Sei que foi esta a educação que a mãe lhe deu e tudo mais, mas há uma hora derradeira na vida de um homem em que deve escolher ouvir a mulher com quem está jantando ou a própria mãe que à estas horas já deve estar dormindo.

Esta semana recusei três convites para jantar. Então resolvi aceitar este, porque uma mulher que vive dando balaio não pode reclamar que não tem com quem dançar. Foi para saber como me sentiria. Agora sei.