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Albert Camus, Discurso do Método, Fábula, Kamel Daoud, O caso Meursault, O estrangeiro, René Descartes
“as fábulas fazem imaginar como possíveis muitos acontecimentos que não o são”(*)
Especulemos juntos sobre modelos elegíveis. Hipotética jovem, cabelos longos e loiros, olhos azuis, vinte e quatro anos, concluindo o quinto ano da faculdade de Direito, filha única de mãe e pai alegres e simpáticos por natureza, criada bem educada e querida entre centenas de amigos cuidadosamente cultivados ao longo dos anos. Esta moça, no contexto da festa alemã mais tradicional da região – e no imaginário coletivo – é o ideal de princesa, o júri está formado e tem de eleger a rainha da festa.
Concorrem com ela outras dez garotas, entre elas a improvável Descartes, com seus tímidos e magros dezoito invernos revelados na pele alva como a neve. Apresenta-se com cabelos castanhos, lisos, divididos ao meio, escorridos sobre os ombros. Escolheu não os trançar, nem os tingir e recusou-se aos cachos artificiais. Nada mais que a abone, tampouco desabone. Serão julgadas a beleza, a desenvoltura e a originalidade do traje típico; não a cor dos olhos ou da pele, diversidade, sardas no rosto, penteado ou inocência.
Deixemos as predições aos astrólogos e os tarólogos com seus arquétipos. Li por aí (*) que contadores de histórias devem contar as histórias tal como aconteceram , essa ainda não aconteceu. Senão, distorcê-las na forma de fábulas, assim torná-las dignas de serem lidas, deixando de lado as circunstâncias mais baixas e menos insignes. Parece simples: aguardar o resultado e depois contar o desfecho começando com Era uma vez. Dizer da torcida sem explicar a torcida. Mostrar o apoio das famílias sem tramar sobre o equívoco na falta deste. Tal tipo de julgamento não chega a punir ao deixar de coroar e o breve poder de se expressar concedido às dissemelhantes moças vale tanto quanto a faixa.
Quem é que não quer viver uma vida de costumes norteados para um conto de fadas? Foram-se quatro horas do dia e eu não consigo finalizar essa crônica. Afirmo a mim mesma que um dia isso tudo vai mudar… Buscar entender como dar profundidade a todo tipo de histórias é algo com que eu gostaria de estar me ocupando e então tomo nota de ler O caso Meursault, de Kamel Daoud, de 2016, que se propõe a recontar O estrangeiro, clássico de Albert Camus lançado em 1942; mas não avanço. Este livro trata de uma história oculta dentro da outra, que já tinha acontecido, ainda não estava escrita. Meu dilema pessoal parece ser outro: estar detida numa história que já está escrita, destino imutável ou coisa do tipo.
*no Discurso do Método, Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal – 10, René Descartes, Tradução Ciro Mioranza, 2ª Edição, Editora Escala, página 19.