Bem cá pertinho. Quero lhe falar, nem sei se devo.

Eventualmente o amigo já tenha brincado na infância de “morto-vivo”. A brincadeira, não vá lembrar, consiste em reunir um grupo de crianças, e estas devem seguir o comando de uma delas, mantendo-se em pé, “vivo”, ou agachar, “morto”. As duas palavras são ditas intercaladas e aleatoriamente, cada vez mais rápido, a fim de provocar que algumas crianças errem o compasso, deixem a brincadeira.

Proponho testar o reflexo dos nossos sentidos, quando diante de algumas situações cotidianas. Vou tentar dar o exemplo:

Você transita pelas ruas, é madrugada, vê uma prostituta com a barra da saia erguida, ofertando serviço. Se for julgar antes feche os olhos. Se for abrir, abra a mente. Se for parar, seja gentil. Se preferir, siga. Se for concorrente, imagine que ela tem celular, talvez saiba ler, seja até mais culta, tenha um carro melhor que o teu, more num apartamento lindo, e escolheu este ponto porque ficava menos iluminado, logo, mais seguro para o cliente. Possivelmente ela não tem passagem pela polícia, nem usa drogas, e tem preservativos na bolsa. Um filho pequeno, menino ou menina, em casa, esperando. Certamente ela tem uma mãe, também. Talvez não tenha mais pai. Ou tenha. Agora já passou. Pode voltar ao que estava fazendo…

Um homem caminha pelas calçadas da Barão do Rio Branco num dia muito gelado. Segue sentido schopping-igreja. É passado das dez da manhã. Ele calça sandálias. O sol mal deu conta de derreter a geada da grama, no Morro dos Três Templos. É um senhor muito velho. Vem na tua direção. Talvez esteja indo ao INSS, que fica para este lado. Traz papéis nas mãos. Você se surpreende com os dedos do pé esquerdo à mostra. Teu olhar foge, conferir a condição do pé direito. Neste, há uma meia. A cor de terra vermelha, e o estado degradado, indica a idade da meia.

Tente manter a própria expressão, cabeça erguida. O homem segue, cabeça baixa. Nada pode ser feito a esta altura da rua. Tuas botas seguem contigo até teu carro. Vá para casa, depois. Separa as roupas. Há uma gaveta com centena de meias. Para de reclamar do frio, do calor. Fecha a boca aberta. Leva o ar puro a entrar das narinas aos pulmões. Sente o cheiro das frutas, confere o preço do pinhão, na quitanda do Knopik, primeiro. O homem bem gostaria de comer uma pocam… Mas ele já está aposentado, é o que parece. Já está lá adiante, agora.

Uma mulher com uma criança de colo, e outra a tiracolo, solicita ajuda financeira, “uns trocadinhos”, na porta da agência do Banco do Brasil. Se tiver, abra a mão. Se não, ou não quiser mesmo contribuir, olha a pessoa nos olhos, diga que lamenta. Se na saída do caixa tiver, caia com uma nota de dez reais – é o valor mínimo disponível para saque. Só se estiver sobrando, mesmo. Mas não feche os olhos, como se não estivesse vendo. Nem faça de conta que não ouviu. Não se finja de morto. Se muito, admita que está falido.

Você pode me ver? Ajudar? Tudo bem: sim ou não. Só evite mentir.

Superei uma fase da vida em que costumava criticar todo mundo: o governo, meu ex-marido, escritores, e os desserviços públicos, por preferência. Pessoas que falam sobre “perdão” no dia destinado à consciência LGBT. O Papa, que é ‘eleito’ para falar em nome do povo já disse que, se a pessoa busca o Senhor, quem é ele para julgar – e quem sou eu? Mas não se trata disso. Abre a mente. Experimenta a sensação de não ser um cordeiro, pra começar.

Somos todos herdeiros (ou desertores) de tudo. A um comando (nosso/vosso) vamos todos morrer ou viver, melhor ou pior. Talvez fosse o caso de ir de encontro d´alguém, do mundo, fazer as pazes. Ou esquecer. O que for melhor para o outro. Chegar até a pessoa, pedir licença e se apresentar, sem ser leviano. Dar teu telefone. Atender, se ela ligar. Convidar para um café que sabe ela jamais irá, a não ser por mínima chance. E se ela for, talvez seja o caso de, estando lá, fazer as pazes consigo mesmo. Deixar a história pra lá.

Talvez, não! É preciso ter certeza. Estamos mortos? Vivos? Qual o próximo movimento? O que se deve fazer? Quem no comando? O outro? A nossa consciência? E eu a vejo? Ouço? Ignoro? Falo com ela? Calo? Doo? Em que pé da vida eu me encontro?

Não sei as respostas pra tudo. Sei que estou ao meu comando. Que algum amigo hei de perder com meus gestos, e nas palavras. Outros, hei de levar.