“Sei ser mexicano.“
A história pode ser uma história qualquer. Pode ter fantasmas, passarinhos no telhado, gente viva ou morta. Mas quem conta tem de resumir um pouco. Deve dizer quem estava lá, a cena, o cenário e principalmente o que aconteceu.
A minha, foi só por um azar mesmo:
Deus presente, os anjos a postos, o apito da Condor já tinha tocado, as meninas ali, tirando matinho da grama, o Paulinho no muro, os paralelepípedos pintados, faltava nada. A vida era perfeita!
Eu, menino de 81, no ano de 86. Uma irmã de 78, outra de 76, outra de 74, todas no ano de 86, bem ali, juntinho comigo. E a copa do mundo no México, olé! Todos ganhamos chiclete, mas a de 76 garante que foi ela que decalcou a figurinha em baixo da grade da própria cama, a de cima, do beliche. Levou a cama pro quarto só dela quando a casa cresceu, e pra própria casa, quando cresceu, baseada neste fato. Decalque em grade de pinheiro em cama de embuia torneada, não sai por nada, como se sabe. É título ao portador.
Tudo relevante, mais para adiante, só para que saiba.
Quando vi, estava em cima do telhado pela milésima quingentésima vez, olho lá pra baixo na rua, o pai vindo. Antes das sete! Três meninas correram pra dentro avisar a mãe. Saltei, e corri pra dentro, eu também, rindo. O pai finalmente viu o salto perfeito, mirado na caixa de areia. O Paulinho também viu mas foi pra casa correndo porque se o meu pai já veio já era passado da hora. Tinha vinte segundos para chegar até a esquina do outro lado da rua. Todos entramos, jantamos, ninguém falou nada que já não se soubesse.
Compreendeu este último parágrafo? Quer ler de novo? Então o seguinte, vamos fazer uma brincadeira. Tenta me contar o que se passou no último parágrafo, sem olhar. Acha que consegue?
Olé! Talvez não saiba, mas tua memória vai te trair. Parece que é o caso de receber muita informação por dia. Ela passará a descartar alguns detalhes e alterar outros. Vai preencher as lacunas da história até eliminar por completo sua forma “surpreendente, errática e inconsequente”. Desconsiderar o sobrenatural, tornar factível.
Protagonista, não saberia contar igualzinho dois dias depois… Dependendo o castigo contaria de um jeito, mas se meu pai tivesse aprovado, pulava de novo, contava de outro. O amigo no muro pode ser que fosse o mesmo, não garanto. Minha irmã garantiria. Ela sempre lembra das histórias nos mínimos detalhes. Passava a conversa, e fosse ela, e é ela mesmo, contando, como se fosse eu, era capaz de jurar que bem ali tinha uma nespereira enorme, que o Sindicato ainda estava em construção… e Etc. Que só por Deus nunca aconteceu nada mais grave mesmo.
Tecnicamente, preencher as lacunas e esquecer alguns detalhes de histórias requentadas, os estudiosos chamam isso de “aplainamento” da memória. Foi o que aconteceu com meu cunhado. Ou com o advogado dele. Olha, por exemplo, o que escreveu na petição do divórcio litigioso:
“Os filhos do casal permaneceram sob os cuidados da genitora até o presente momento, diante da discordância da requerida em aceitar a guarda compartilhada. O requerente afirma…” (pela primeira vez na vida!) (continuei do mesmo ponto:) “… sua vontade na guarda compartilhada…”
Fosse vivo, o mais que estudioso no campo da psicologia experimental, lá por volta de 1900, senhor Frederic Bartlett – (como ‘quem?’) filho do sapateiro da cidade de Stow-on-the-word, na Inglaterra -, teria adorado estudar os dois casos. Fosse em tempo, eu faria gosto em tomar chimarrão com ele e participar do experimento do telefone sem fio. Se você é de 81, como eu, e brincou disso, sabe que a brincadeira pode te dar pistas fundamentais de como a mente humana funciona.
A caixa de areia já era. Olé!