Tags

,

Bem vindos!, de Alegra Catarina.

A borboleta, de Alegra Catarina.

Havíamos nos escolhido. Podíamos lembrar bem como aconteceu, cada capítulo breve ou longo, de cada dia – dos tantos que fomos ficando. Provoquei primeiro. Ele caçoou. Apresentei-me duas. Eu, eu mesma; eu, codinome. Sinceramente até hoje não sei qual versão de mim ele gostou menos! Minha casa era limpa. Ainda que não me importasse em receber visita de aranhas, libélulas e até pássaros de vez em quando entravam pela porta atraídos pela corrente de vento. Talvez pela luz que atravessava os vãos. (Hoje um bem-te-vi entrou). A outra versão de mim o levou à janelas enormes iluminando um grande salão empoeirado. A luz abrilhantava fagulhas de pó suspensas no ar. Permiti que ficasse um tempo ali ouvindo o silêncio da história parada. A falta de vento. A paz. Foi bom começo começar tudo em paz.

Mas o medo bateu nos vidros, alertando. Fiquei agitada com o perigo de amar.

– Queria saber de você se já posso fechar as janelas. Recolher-me aos meus aposentos. Abri este espaço para justificar minha (investida) apresentação levada. Para saber sobre meu exercício teimoso em trabalhar sempre o mesmo tema. Está tudo muito sujo, encarcado aqui, não tem papel higiênico no banheiro, não dá para confiar na água dos encanamentos, tem bolor por todo lado, nada na geladeira, nem um bolo velho no armário. Será que podemos sair dar uma volta lá fora? Lacrar as portas, e não voltar pra cá tão cedo? O que tem aqui: um nada. Gavetas de madeira nobre guardando notinhas feitas em papel já amarelado, que talvez pudessem ser lidas num lugar com mesas dobráveis, tentando desarmar braços cruzados. 

Saímos. Nunca mais voltamos. Perdi o endereço. Procuro, não acho. Vento forte arrancou algumas telhas, levou guardiões do lugar embora. Ninguém prestou socorro, fotografou, registrou aquele segundo meu e dele. Há apenas a minha memória em mim. Aquele descobrir, em um olhar, quem era eu, meu refúgio e estar solitário.

Que já não soube mais viver sem ele desde então. Ainda não sei. Evidente que fiz o esforço de tentar. Tentamos. O silêncio impossível. A amizade impossível. A parceria impossível. A fala impossível. O registro impossível. Passamos a nos amar, ou fui eu, apenas? Declaramo-nos, os dois. Machucamo-nos, os dois. Fizemos juras e cumprimos! Desistimos. Emburramos. Adoecemos. Praguejamos. Perdoamos. Erramos todo dia tentando acertar. A paciência dele foi sempre maior por mim que o contrário. Escrevemos sobre. Desistimos cada vez a última. Insistimos, fomos e voltamos. Fomos, não voltamos. Fomos aguentando do jeito que deu. Fomos e morremos no caminho de volta pra casa. Sucumbi. Paralisamos. Buscamos recursos, remédios: mergulhar no trabalho, fazer exercício, orar, ler, tentar estabelecer vínculo leve. Sempre era pouco pra mim cada sacrifício.  Queria voz, couro, músculo, nervo, coração, comando central, estrutura óssea, alma, presença física e espiritual, aura, fé, desejo. Estar ao lado pra sempre. Viver e morrer junto.

Desde então, sobrevivo de memórias. E ele de produzi-las pra mim sem cessar. Ainda estou agitada demais, passado tanto tempo. Não sei fazê-las, as lembranças, repousar. Quero vida nelas! Exijo das palavras catalogadas, que dormidas, acordem – procurando em vão o endereço certo de acomodar junto ao pó. Procuro, não acho… Acho que achei lugar aqui. Entrei e tranquei por dentro, por hora. Mudei pra cá. Restaurei o lugar. Lustrei das tábuas do chão aos lustres. Rearranjei os quadros nas paredes. Costurei almofadas novas. Limpei tudo, bordei toalhas, fiz todo dia o jantar. Renovei o ar. Busquei discos de que pudesse querer ouvir. Plantei lavanda nos vasos e rosas antigas do portão até a porta principal, dos dois lados da calçada. Organizei um escritório, pra ele. Tirei folha do bloco sem notas. Escrevi com caneta dele uma carta. Guardei junto àquela que nunca chegou. As teias voltaram a brotar por todo canto. Deixei as aranhas à vontade enquanto relia seus livros. Foi um tempo bom esperar.