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Curva desnível, de Alegra Catarina

Fante Helê, o elefante branco, passeava pela Praça do Meio quando foi surpreendido por uma destas estátuas de escritores que começaram a plantar em cada banco de praça do país. Desistiu da caminhada que o levaria até a academia para idosos, onde observava besouros e chupins que ali pousavam, sentou ao lado do convite ao descanso: “ao invés de pichar,  leiam meus livros”. Livre que era, desde que a Lei do Desuso foi publicada, curtiu a brevidade do tempo proseando sozinho, até ouvir tocar a sirene do bico de carga-descarga-refrigeração, que mantinha no circo, no beco da rua, para se auto-sustentar.

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Orki Idéia, mais conhecida por Penélope, em razão das charmosas unhas, sob as quais já exibira obras de Elizabeth Blackwell, Mary Cassatt, Frida Kahlo, Tarsila do Amaral, justamente nesta última viagem ao Rio, para onde veio morar em definitivo, queixava-se à manicure de ter pego Aids na Europa, em visita no verão passado. Desde então parou de viajar. Agora dedica-se em tempo integral ao ofício de tatuadora de tesouros, atendendo somente em domicilio.

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Apontador, o aposentado, passava o dia entre velhos pinguins de geladeira, tocos de lápis e rascunhos. Entediado, ofereceu-se para realizar o trabalho com que sonhara a vida inteira: acender e apagar o farol. Dispensado por concurso, passou a ser visto, desde então, subindo e descendo o Morro de Antenas, duas, três vezes por dia. Assim que o sol raiava, baixava o interruptor. Logo que as nuvens o encobriam, ou a noite caía como o próprio queixo diante de moça bonita, acendia o farol. Certa vez, ouviu-se um estrondo, a luz do farol nunca mais apagou. Apontador sumiu no mundo, nenhum marinheiro compareceu ao enterro, nem soube seu nome. O salário continuou a ser depositado, por treze anos. Até que alguém viu.

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Calendo Apertado nascera dia vinte e nove de fevereiro, normalmente, apesar da cirurgia marcada para o dia dois. A mãe teve vontade de fazer xixi, pediu licença, voltou com o menino nos braços. Calendo fez-se homem azedo e amargurado, quando se soube. Vivia a reclamar dos anos, sempre menores que os outros, encurtados, arredondados, justos, sem margem de negociação.  Até que alguém lhe contou que os nascidos nesta data têm maiores chances de se tornar ‘perfeitos’. Ele entendeu perfeitamente: ‘prefeitos’, e mesmo sem saber da razão, se convenceu. Desde lá, de quatro em quatro anos, sai candidato, o que lhe dá direito ao melhor cargo no Município, independente do partido eleito, dada a terceira melhor votação. Há anos é conhecido por ‘Divisor de Águas’.

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‘Guarda Dólares’, apelido de crachá do Júlio Cata Dor, sintetiza a tarefa do curador da lixeira, acomodado numa almofada indiana, sobre a mesa do ‘Presidente Internacional da Caça ao Níquel’, Seu Antônimo. A função, exaustivamente discutida na elaboração do Plano de Cargos e Salários, consiste em ler e reler, montando esquemas e quebra-cabeças se preciso, cada papel rasgado ou amassado, depositado ali. Informações consideradas sigilosas devem ser acomodadas o mais fundo possível, no fundo falso; as menos importantes, deixadas à vista, caindo pelas bordas; adesivo deve ser colado fora, indicando a hora, exata, de esvaziar. A instrução veio da terceirização cujo objetivo maior é diminuir custos com a faxineira e a secretária eletrônica, concentradas na mesma pessoa, Júlia Cata Vaegas, moça bem vestida que passa por ali de segunda a terça-feira, às duas.

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Pára Granizo é destes homens iluminados que pressente a energia acumulada ao seu redor. Também conhecido como O Último dos Pardais, a décadas trabalha numa estrutura dobrável que proteja as diabólicas contra ferrugem e pedras d´água.  Sua inspiração e o calo duro no pescoço, vem de olhar para o céu, do barraco, no alto do morro. Nunca reparou, que não era do tipo invejoso, nas compactas, instaladas nos prédios de toda redondeza. Seu maior sonho é viajar num satélite.

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Bala Jato, o primeiro trem bala a atravessar o país de Norte a Sul às margens da BR 101, projetado na primeira versão do Programa de Aceleração do Crescimento, e transcrito de forma abreviada no Plano Pluri Anual dos últimos dez anos de azar, quanto mais velho fica, mais vai encolhendo. Muitas propostas de pilateiros famosos chegam a ele, atormentando os nervos, com recomendações caríssimas de alongamento, sete vezes por semana, verdadeira tortura. Andava triste, tristinho, até outro dia, quando um especialista finalmente diagnosticou a causa, afirmando: que só viraria realidade, algum dia, se invertidos os pólos. O problema é que seu idealizador, o Msc. Eng. Herdeiro da Estrela Vermelha d´El Brazil, acredita em tudo menos nisso. Gasta os dias vendendo bala nos aeroportos, para passar o tempo, entre uma conexão e outra, tentando levar a vida, honestamente, e uma grana extra que às vezes transporta. “Bala Jato não passa de um sonhador viciado em longas distâncias”, diz, entrevistado.

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Mause ou Léo, o bondoso homem negro, de cabelos raspados, traz consigo, cultivado de meio século, a velha trança de um careca, transmitida de geração para geração, pendurada atrás da nuca, junto de pesada corrente de outro qualquer e o crucifixo-canivete, cravado junto ao peito. Foi no tédio da manhã ensolarada, lavado de suor, das costas nuas para dentro da bermuda até as partes, que motivou-se a mudar de corte. Sentou na primeira barbearia que viu às margens do córrego de esgoto a céu aberto, bem na hora em que o rato escapava do gato, vindo tropeçar no seu sapato. Ninguém se feriu. Era um sinal. Supersticioso, levantou, seguiu seu caminho, em paz. Foi por um fio.