Contra o Mal da Abstinência - de Alegra Catarina

Contra o mal da abstinência – de Alegra Catarina

Foi por pouco que a caneca de café fervente não caiu sobre ela, ao sentar. Não é boa ideia deixar algo assim na cabeceira da cama na falta de um criado. Mesmo um copo de vidro com água desaconselho. Talvez tenha sido deste jeito que aquela amiga tenha ido parar no hospital com queimadura de primeiro grau por vias de chá. Soube esta parte da estória toda e foi por pouco, logo cedo, que perdeu de bater na quina do escritório, descendo a rampa, de ré. Os reflexos estavam salvando o dia, do sono atrasado e cansaso. Cançaso. Cansaço. Queria lembrar a posição das cecedilhas e mal sabia o que comeu no almoço. Cedilhas. Quebrou dois copos, um contra o outro lavando a louça com a mão frouxa, antes de fazer mais estragos.
Então foi dormir, se era isso. Não antes do café. Não sem ler. Sem fazer ao menos uma nota. Verificar as rugas e se lavar às patas, encharcando o banheiro.
Andava doente em não dormir, e insistia em concordar que dormir era inútil, ou perda de tempo, com tanto para se mudar no mundo. Que tanto? Já foi assim mais revoltada. Agora tinha carro se precisasse ir, casa se precisasse morar, trabalho se quisesse trabalhar, grama se quisesse roçar, filhos se quisesse cuidar, montanhas se quisesse subir, e aparelho nos dentes se quisesse realmente passar fio (não queria). Já não lia jornal, nem via tv, não tinha colegas de trabalho mal pagos. Tinha meia dúzia de amigos parceiros, outros mil e duzentos on-line casando todo sábado, tendo filhos nas segundas-feiras.
Morasse em Macondo podia se dedicar mais às loucuras possíveis no tempo parado apesar dos cucos. Ia ver o inverno passar, ver o verão passar, nem ver a primavera passar. E podia trabalhar sem precisar dormir, simplesmente porque sim. Se fosse dormir, era na hora errada que bem entendesse e não tinha telefone despertasse, ou tecnologia que chegasse, à pé ou cavalo, nas bandas.
Lá, na cidade dela, não tinha outono. Tinha frio e quente, e tempo de flores quase o ano todo. Quente mesmo era raro, com o sol ralo, fino, brando, eternamente soprado de vento fresco. E se fosse, era entre as nove e as quatorze horas, e chega.
Parece justa a ideia de descrever o significado de “cansaço” como sendo o estado físico que se agravado culmina na perda da memória. Tomou nota: café frio não queima nem faz não dormir acordado. Passando a miúdos, devia passar mais café.