Agora anda por aí, passeando de mãos dadas comigo. Modo de dizer. Às vezes é meio sem graça, sai de casa desarrumada, pouco vocabulário. Outras, estourando pela borda, cheia de livros. Quiser ver amargar é mantê-la trancada em armário, curando. E se outra mala – Deus me livre uma mais nova -, for convidada a ir até ali, numa praia, dar uma volta, ir de férias, preterida, vira o bicho! Desde ano passado não faz nada que não seja guardar pó. Exageraaada… Esta é Málinha. Batizada, foi com acento. Se sai de casa, vai no banco da frente, se exibe, canta de fábrica: “Má-linha, lín-dinha, ví-aja, í-cânta…“. Enquanto está no front é divertida. Basta ir pro banco de trás, que resmunga, a resmunguenta.
Depois acalma. Canta baixinho no ouvido das sacolas: não interessa se ela é coroa, Málinha velha é que faz viagem boa. Qualquer mochileiro, estudante, dono de casa sabe. Alguns até pedem Málinha perto, pra compania, por companhia, por cortesia. Tratam como artigo de luxo! E ela cede, de vez em quando, sendo gentil, emprestada. Ao menos presta, ir de casa a outra, ter novo ângulo de visão, que sacada. Mas o que mais angustia Málinha, pior que tudo nesta vida, é ter dono caseiro. Não deseja o mal pra mala alguma. Sujeito destes pode passar anos sem sair de casa. Até prefere, se perguntado, trocar Málinha por cadeira de balanço, for de embuia, forrada com veludo importado. Nada! Valorizei… For de vime, já troca!
Parar em brechó beneficente, melhor convento, diz Málinha. Azar maior cair em porta-malas de quem adora viajar sem bagagem. Tipo que sai, se perde. Vai sem mala. Leva a mala, perde. Deixa duas camisas bem dobradas em bolsa menor, a mala no carro. Bobear não leva nem calcinha. Esquece. Mulher, se for, avoada. Pior do tipo gastadeira de promoção – nem procura, compra nova. Málinha prefere é dono homem. Mas tem cada mala, vai logo avisando. Pra não ter problema com mala perdida, viaja sozinho. Pra que serve um destes, sem expectativa? E tipo que pega estrada errada, segue, só pra ver onde vai dar, lugar bonito, aumenta muito o desespero da Málinha. Não poder estar junto, registrar a história. Mas sofre…
Qualquer coisa, dono destes, passa com o que tem. Improvisa. Tem amigo mala, namorada mala, e um montão de gente boa de verdade ao redor. Málinha, nem pensa em levar. Antes leva pra casa, na volta, uma que viu na vitrine, lustrada, bem arranjadinha. Potranca de uma mala, como se diz, desdenhando. Tão espaçosa que engole tudo. Mas assim que é bom. Se couber, dá pra levar onde for. A mala toda, parentes, contrabando, peso morto. Pra cima e pra baixo, que é pra ficar cuidando da vaga, ocupar lugar vazio no armário, estas coisas. Então cuida, trata com carinho, dá comida na boca, fica ali, agarrado. Ainda acha bonito… Que se perder, perde a mala, perde o braço, a caneta decerto, o prestígio, amigos, status, de pegador de mala. Quem vê, perde tudo! Málinha não se conforma, mesmo, né Málinha?… “Não sei que tudo”, diz, enciumada. “Não vi nada nesta mala aí que pintou, assim do nada, de carona”. Bufa, mal humorada.
Pois dia destes, sol lindo, Málinha fugiu de casa. Foi de abandono, mesmo. Digo porque conheço. Saiu, não voltou. Ficou na chuva, no relento, se queimou. Deixou bilhete de adeus, e se muito, e nem isso, olhou pra trás cem vezes. Depois calçou os patins, seguiu seu rumo, sonhando acordada, cambaleando. Decidiu que ia viver na rua, virar Nátasha. O mundo vai acabar E ela só quer dançar… Alguém parasse, conhecido da noite anterior, aqui mesmo da internet, fosse o baterista da banda, entrava. Chupa esta manga… Outro dia, com mais tempo, conto detalhes de onde a encontrei. Maior teatro! E foi longe, a pequena. Até confundo uma com a outra, de tantas viagens. Birrenta assumida. Mal educada ainda por cima me aprontando. Fazendo que ia mesmo se jogar, em frente de caminhão. Málinha! Málinha! Málinha! Precisa encurtar esta história ou te largo, juro!
Besteira. Nem tento. Eu que não sou mala nem nada, nem gosto de malas a tira colo, estou aqui, apesar de tanta experiência, perdendo tempo, tentando achar soluções para os problemas que ela a causa. Se parei foi por favor à Málinha. “- Nátasha, pra você.” Esbarrei nela no lugar de sempre, pediu que escrevesse um bilhete. Málinha mais gracinha, fico vendo. Foi super simpática, indicando o café da esquina. “Pégaa esquerrda, ejá chega”. Apontando pra direita com a bota errada. Faz-de-conta que entendi. Fico brabo e encantado, quando a vejo. E te digo – até o mais duro dos homens se renderia à Málinha, atendia seu pedido. Então que seja eu. O trem das onze pode esperar… Se me pede pra anunciar, anuncio: não sou trouxa. Quero Málinha por lembrança, na grande viagem da vida. Peço uma foto em troca do favor. Mais nada, concorda. Outro dia ela a mesma, Málinha (está certo que foi só por socorro), me serviu a contento. Foi quando passei aqui a primeira vez. Depois teve a segunda. E a terceira. Ah, foram muitas… Mas agora chega, né Málinha? Então tá aí:
[ME LEVA]
– É de alguém esta Malinha?