São oito horas da noite. Passei as últimas doze numa estrada de chão do interior do nosso interior, na melhor concepção de interior. Lá pra diante da Serra da Alegria, acesso pela cidade de Rio Verde de Mato Grosso/MS. Resolvo que quem dirigiu até agora toca mais este pouquinho até em casa. Vou viajar o restinho de noite, manhã inteira, e se tudo correr bem, almoço com meus pais – fazer uma média com eles pois falhei no almoço de Natal. Naturalmente que, em tantas horas de estrada, o tédio de já ter ouvido todas as músicas disponíveis em mais de uma versão, e repetido exaustivamente as que mais gosta, você começa a inventar passatempos. Como o de fazer notas de viagem, responder uma mensagem perguntando se ainda está viva – sim, perceber no GPS que há um ribeirão à direita da estrada e é qualquer coisa grande, grande mesmo – tomara que haja uma ponte no meu caminho, para ter uma noção de quão grande.

Faço uma gravação de voz no celular: lembrar-se de pesquisar o que era aquilo (o ribeirão), enquanto a imagem azul vai cada vez mais aumentando. Admito que seja uma pessoa miudinha, perdida no mapa, totalmente nada viajada, mas sério, pelas minhas contas, eu não deveria estar nem perto do mar e tem um mar passando aqui do lado da BR…! Não que eu possa vê-lo, mas o GPS está todo azul do lado direito, me entendem? E o mar mesmo, do lado direto, só se eu estivesse sentido Norte, e estou (ou ao menos deveria) indo sentido Sul. Sinceramente muito cansada já. Quero ir para casa e chegar logo e se isso for verdade, não é da boa. Riam de mim por ter tentado imaginar até onde corre o Rio São Francisco. Não me importo que riam. É noite e há trevos que sabe a sorte…

Toco muitos quilômetros ainda e o azul começa a tomar conta da telinha no painel do carro. Entro na ponte qualquer que eu queria passar. A penumbra é quase total com a lua nova encoberta. O satélite natural da Terra a pouco estava sorrindo alaranjado no céu, agora se escondeu. Não há iluminação no trecho. Tudo que tenho são os faróis do meu carro. A terra acabou pra sempre na fotografia iluminada. Procuro placas, não há. Nem nenhuma informação relevante no aparelho para que eu possa me localizar. A próxima cidade é Presidente Prudente, tudo que se sabe e isso não me diz muita coisa. Ainda não sei se estou indo mesmo para o Sul ou para o Norte navegando sobre a ponte. Que ponte é essa? A sensação é de que estou indo para o céu. Se um dia existisse um caminho para o céu (penso alto e verbalizo, falando sozinha) e fosse noite seria assim.

Abro as janelas do carro para sentir o cheiro de mar. Falta o sal no tempero. É cheiro de água doce… É o Rio Paraná! Só pode! Estou incrédula! Eu nunca poderia imaginar na minha pequenez de gente, do Rio Paraná, que fosse tão largo. O rio mais largo que já vi foi o Mampituba, e olhe lá que fiquei bem impressionada com a divisa. Aquela vez era dia, fui a pé até o meio da ponte e voltei confusa quanto ao Leste versus Oeste, apesar de outro mar, indicando o Leste logo ali, à luz do por-de-sol em Oeste do dia. E aqui é noite, tem esta diferença. Lá, naquele rio, a água era marrom da cor do mar, pude ver bem. Aqui não tenho como saber, não posso vê-la, a água, nem querer tocá-la, de passagem sobre. Então gravo esta imagem na memória: o Rio Paraná tem a água azul da cor do mar das praias de Santa Catarina. Azul como água de mapa rodoviário. E sabe, todo mundo um dia deveria vir aqui a primeira vez sentir isso. Perder o avião de propósito, alugar um carro, dirigir até aqui, esperar anoitecer, atravessar a ponte no breu. Outro dia, de dia, voltar o mesmo caminho, para ter outra noção, esta que não tive: sobre a cor da água – quem sabe seja verde afinal, espero que não poluída -, a cidade aos fundos, talvez barcos, gente pescando ou nadando.

Como não passei aqui antes se estou voltando? Precisei parar para dormir em Araçatuba/SP (ou seria Arapongas/PR)? Era ali num hotel destes Parati. Indo lá por cima (vide mapa) o que vi de maiorzinho e de dia, reparando a grandeza, foi a Usina Hidrelétrica Engenheiro Souza Dias (Jupiá). Mas passar por cima de represa é sem graça. Esta ponte de que falo (sobre o Rio Paraná represado), a que vendo, a mais impressionante que já atravessei dirigindo, parecia até sonho de motorista insone (ou sonâmbulo) flutuando sobre as águas do localizador. Reduzi a velocidade. Passei devagar tudo que pude para sentir mais tempo a paz do caminho. Agora que fim de relato, são duas da manhã. É o melhor horário para atravessar.