Tags

Porteira, de Alegra Catarina.

Fronteira, de Alegra Catarina.

Gasolina, água, óleo, ar, completa, por favor, pediu, entregando as chaves e se dirigindo às conveniências. É só isso, no débito, por favor, pediu, flagrando-se arrependida em não ter habilitado o crédito. Seguiu viagem até a próxima árvore, duzentos quilômetros dali, descreditando no sistema de milhas que desistiu de testar aquela vez que o amigo disse “não” ao telefone, sobre o convite para viagem que corria no modo econômico. Abriu o porta-malas e a caixa de isopor. Precisava de novas garrafinhas d´agua e aproveitou descascar uma manga.

Parara numa entradinha de estrada de chão. Talvez desse numa roça, numa chácara, numa casa abandonada. Resolveu recolher o carro mais para adiante, renovou o protetor solar, perfumou-se com repelente, desceu a bicicleta e saiu pedalando. Iria até a altura de alcançar o medo da distância das rodas largas que em movimento deixavam-na mais segura. Rejeitou este pensamento, em seguida. Decidiu por encontrar o final da estrada ou fazer quinze minutos de pedal, o que chegasse primeiro. Negava-se a acreditar ser mais seguro viajar a cento e vinte por hora numa BR esburacada do que pedalando numa ruela. Ninguém teria o azar de ser assaltado num lugar destes e ter de voltar à pé para casa. Riu da hipótese de ficar sem água, sem comida, sem carro, sem telefone, sem bicicleta, sem capa de chuva, de shortinho dependendo de que a alma caridosa de alguém fizesse parar o carro oferecendo-se para levá-la não se sabe para onde tivesse um telefone, se é que existem telefones nesta área.

Lembrou do tempo que viajava tenebrosos oitenta quilômetros, com uma trouxinha de roupa nos pés, de carona com o tio caminhoneiro embriagado, ouvindo-o cantar Roberto Carlos enquanto se dirigia à ela, respeitosamente. Devia ter uns dez ou doze anos. Evitava sorrir, mesmo quando ele era engraçado. Prestava atenção na estrada e na sensação de que iam perder a carreta na próxima curva. Ele acelerava mais desafiando-a a ter coragem. Ela alternava olhar os olhos azuis, as luzes no painel e os olhos de gato no trecho das vinte e sete curvas. E no botão do porta luvas que o tio pedia para abrir para pegar uma bala. Podia segurar a arma que havia lá dentro se quisesse.

Acabou morrendo novo e nem foi de bala nem da estrada, mas esfaqueado num bar mesmo, alguns anos depois. Alguém disse sobre ele: esse não incomoda mais. A polícia arquivou o inquérito sem investigar a falta de provas. Parece que um estranho de passagem pela cidade, vindo de lugar nenhum, indo para lugar algum, procurou por ele. Reconheceu os cabelos e barba compridos, loiros de fazer inveja a qualquer loira oxigenada, chamou pelo nome, esperou se virar, conferiu e meteu a faca. Não se falou nada. Ninguém reagiu ou chamou socorro. O homem foi embora numa moto.

Antes disso era bonito, espírito alegre, carinhoso e gentil. Nunca tocou um dedo nela. Dizia ter muita consideração pelo cunhado, gente boa. Preocupava-se com o conforto e a segurança dela na cabine do caminhão. Universo colorido, decorado com cortinas de veludo, santinhos e adesivos luminosos. Tinha sempre o que beber, o que comer. Uma rede elástica atras das cabeças acomodava as calças jeans amarrotadas. Dirigindo contava longas piadas de papagaio, que ela mal acompanhava, fazendo devagar o tempo de pouco mais de hora. Dizia como ela era bonita, como ia virar moça bonita, a mais bonita das três. E a mais simpática e boazinha, a sobrinha mais querida sem mentira! Um dia ia levá-la conhecer São Paulo e até o Nordeste se ela quisesse e a mãe deixasse.

Era outro homem, bem diferente, quando estava na presença da tia.

Se fosse para apostar entre o visto e o não visto, não saberia dizer se foi para o céu ou para o inferno. Para ele tanto fazia desde que não precisasse ficar parado no mesmo lugar. A vida dele estava na estrada, dizia, apontando à frente com olhar apaixonado. Ainda assim a moça desejou que se sentisse bem lá mesmo onde estava, embaixo da terra, na vaga do cemitério. Ele teria rido amavelmente dela se a visse agora, pensou. Foram cúmplices de uma vida toda, desde que ela nasceu e até hoje. Só ela sabia de algumas coisas que ninguém mais sobre ele. E só ele sabia o medo que provocava nela…

Deixou as lembranças pra lá. Acomodou a bicicleta no carro e seguiu até a vigésima parada, sessenta quilômetros dali. O sol poente era mesmo um espetáculo, exatamente como imaginara! A placa pregada na árvore indicava um hotel duzentos quilômetros dali, saindo a direita da BR. Haveria água fria para um banho, com sorte um bom peixe, uma boa cama de casal para deitar atravessada, talvez até uma lojinha onde pudesse comprar duas regatas baratas. Não indicava um telefone para ligar perguntando os detalhes. Seguiu até a próxima árvore e desceu a barraca. O apito do carro indicava a necessidade de reabastecer.

Acendeu o fogareiro para um miojo enquanto devorava ovinhos de codorna defumados, postos em conserva. Abriu o vidro de rolmops. Serviu-se da metade e despejou o restante à alguns metros dali. Jantou e dormiu. A noite estava fresca, o céu estrelado sem lua.

Sonhou que uma onça a visitara de madrugada. Ficou vigiando a porta pelo lado de fora, cuidando para não fazer muito barulho.